domingo, 31 de janeiro de 2016

O Paradoxo Inuit



O jovem americano Christopher McCandless em 1990 resolveu largar sua vida de recém-formado em história e antropologia, suas possessões e sua família para trás e se aventurar pelos EUA afora como um nômade vivendo uma vida “mais simples”.  Seu objetivo era adentrar a natureza selvagem no Alaska, onde veio a falecer sozinho em 1992.  Para quem viu o comovente filme de Sean Penn, Na Natureza Selvagem, a estória de McCandless é familiar.  O que o filme retratou incorretamente foi a maneira que McCandless morreu, pois enquanto o filme mostrou que McCandless morreu ao ingerir alimentos venenosos, as autoridades concluíram que McCandless morreu de inanição.  Independente de qual versão se acredita, McCandless pagou um preço pelo seu despreparo e evidente desconhecimento de como sobreviver em um ambiente mais inóspito que aqueles em que vivemos.

Apesar de alguns poderem imaginar por desconhecimento geográfico que McCandless morreu próximo ao Polo Norte, na verdade ele faleceu no coração do Alaska, no Denali, ainda longe do Círculo Polar Ártico e ainda mais longe do Oceano Ártico.  Se McCandless encontrou dificuldades em uma área ainda não tão inóspita, imaginem como é a vida daqueles que sobrevivem nos confins do mundo, no litoral do Oceano Ártico.  Não falo dos estabelecimentos como Barrow no Alaska que apesar de ser no litoral do Ártico, é abastecida com produtos de áreas mais habitáveis, e sim dos inuítes, ou esquimós, que sempre viveram ali.  Apesar dos Yupiks não serem Inuítes, o termo Inuit é o aceito perante os aborígenes do Alaska, norte do Canadá e Groenlândia, pois estes consideram Esquimó um termo pejorativo.  A vida dos inuítes é realmente mais simples na teoria, apesar de seus costumes, não tem que se preocupar com que carreira irão seguir, contas bancárias, declaração de imposto de renda, parcelas do carro em atraso, reuniões de condomínio, etc.  As únicas preocupações é sobreviver caçando focas, raposas e outros animais, evitar morrer de frio no inverno (e até no verão) e se reproduzirem, é claro, para manter a continuidade da espécie.  Alguns inuítes mais idosos preferem o suicídio a se tornarem um estorvo para as famílias.  A vida é bem mais simples para estas comunidades, mas é muito mais dura.

Uma comunidade inuit isolada da sociedade é talvez o mais próximo que se possa chegar de um socialismo utópico.  Não há acúmulo de riquezas, e mesmo que algum inuit consiga carregar uma quantidade absurda de peles de raposas e outras quinquilharias, estas terão uma liquidez limitada na “economia inuit”.  Todos devem trabalhar em prol da reduzida comunidade, e existem líderes para colocar um mínimo de organização e foco nas atividades inuítes.  Pobreza e miséria ocorrem quando a comunidade é incapaz de encontrar alimentos.  As crianças inuítes tem como aspiração se tornarem grandes caçadores ou se conformarem em realizar as necessárias tarefas domésticas.  Não há espaço para improdutividade em uma comunidade inuit, pois isso pode significar não haver alimento para sobrevivência no dia seguinte, portanto não existem inuítes acomodados sem trabalhar recebendo  benefícios do governo.

A nossa sociedade, incluindo a brasileira, avançou consideravelmente desde o início da História, permitindo que a produção de alimentos seja mais farta e que não demande, na maioria das vezes, tanto do nosso tempo.  Essa fartura permitiu que pudéssemos nos concentrar em outros aspectos da nossa vida, como nossa saúde (na teoria pelo menos), educação para nós mesmos e nossos filhos, incrementar o conforto de nossos lares, e até mesmo em lazer.  As nossas sagradas férias são comuns, mas imagino que para um inuit ter férias tem que ter caçado uma baleia, para o desespero dos ambientalistas, para poder ter um mês de alimento pelo menos.  O que impressiona na nossa sociedade é a complexidade das atividades que são requeridas para que possamos produzir esta quantidade de alimentos, além dos outros bens e serviços que consumimos.  Enquanto a complexidade da atividade econômica inuit é encontrar os alimentos, a nossa chega ao nível de modificar o DNA destes, para o desespero dos “eco-chatos”, e realizar previsões metereológicas mais precisas para antever os eventuais contratempos da natureza selvagem, que continua a nos incomodar.  Um único inuit pode ser capaz de cuidar de toda a atividade econômica da comunidade, enquanto que nós só seremos capazes de cuidar de uma parcela reduzida da atividade da nossa sociedade.  Às vezes nações inteiras são incapazes de suprir todas as necessidades de sua população e precisam importar bens.

A complexidade da atividade econômica cada vez mais requer uma maior capacitação da força de trabalho, conhecimentos mais específicos e uma versatilidade que vai além da capacidade de vários profissionais.  A impressão que tenho é que no futuro, existirão profissões que demandarão uma formação que um indivíduo só poderá atingir quando tiver 40 anos, mas é claro que o departamento de RH da empresa almejará um jovem de 22 anos, ou menos, com toda essa capacidade.  Para aqueles que de repente percebem que suas proficiências não estão mais em alta no mercado de trabalho, pois a atividade econômica apesar de não ser um ser vivo é orgânica e mutável, fica o desafio de desenvolver novas proficiências para se adequar às demandas.  É similar a uma comunidade inuit descobrir que as focas desapareceram dos arredores e terem de procurar a vários quilômetros de distância outras focas ou outro animal que possa servir de alimento.  Apesar de termos muitas mais demandas de profissões diferentes, muitos de nós por falta de capacitação, por preconceito do mercado de trabalho estamos condenados a tantas oportunidades profissionais como aquelas disponíveis para os inuítes.

Sim, mesmo nos dias de hoje há miséria e escassez de alimentos em alguns lugares.  Mas apesar disso, enquanto podemos consumir mais de 3000 calorias em um dia, para o desespero dos nutricionistas de plantão, enquanto um inuit consumirá isso se esbaldar na carne mais gordurosa de uma obesa foca.  Hoje em dia, aqui no Brasil podemos comprar salmão na feira, algo impensável antes do Chile criar este peixe em suas fazendas, pois importar esse peixe era somente para os mais abastados.  Isso é um exemplo de como a oferta de alimentos é diversificada a preços acessíveis ao longo dos anos.  Outros produtos são barateados ao longo dos anos graças ao avanço tecnológico e também à maior capacitação dos profissionais envolvidos na cadeia produtiva, inclusive a de serviços mais complexos.

Nações que se aventuraram pelo socialismo encontraram o fracasso retumbante justamente pela essência equivocada deste modelo que julga que é possível domar e entender a complexidade da atividade econômica e das necessidades do mercado de trabalho.  É claro que essa crescente complexidade vem a criar um desafio enorme para as nações diante da exigência de um capital humano cada vez mais aprimorado, sendo que aquelas que tiverem o melhor capital humano se sobressairão em um possível detrimento de outras.

Muitos inuítes estão sendo assimilados pelas sociedades americanas (no Alaska), canadenses e dinamarquesas (na Groenlândia).  Ao executarem tarefas com um mínimo de complexidade, são capazes de acumular riquezas, pelo menos muito mais que em comunidades isoladas e nômades, para que possam comprar alimentos sem ter que caçá-los.  Se estes inuítes forem sensatos o suficiente, poderão até acumular riquezas para adquirirem alguns dos bens e serviços que estas sociedades norte-americanas disponibilizam a seus cidadãos.

O paradoxo inuit é que a ciência e a maior capacitação do ser humano nos proporcionam muito mais que o isolamento e o estilo nômade podem oferecer, mas mesmo assim muitos de nós não se adequamos às mudanças do mercado de trabalho, com o agravante que muitas vezes não somos nem adequados para as tarefas mais simples.  Afinal quantos de nós conseguiríamos sobreviver 1 ano ao norte do Círculo Polar Ártico?  Não saberíamos caçar focas, fazer casacos de pele de raposas e o mais provável que seríamos comida de urso polar.  O progresso de nossa sociedade nos tornou inábeis para algumas tarefas primordiais essenciais.  Christopher McCandless mostra que não estamos nenhum pouco preparados para um retorno à Natureza Selvagem.  Por mais tentador que seja nos livrar de todos os problemas que temos, somos dependentes do supermercado, do seguro médico, do posto de gasolina, entre outros serviços disponibilizados pela nossa sociedade moderna.  Mesmo que venhamos a se mudar para o "meio do mato".


sábado, 23 de janeiro de 2016

De Edirne à Colônia


Os 2.170 km que separam as cidades de Colônia na Alemanha e Edirne na Turquia podem ser percorridos em cerca de 21 horas passando por outros 6 países.  Ambas cidades foram fundadas pelos romanos na antiguidade, mas outra coincidência pode ser traçada entre as duas por incidentes envolvendo imigrantes.  Colônia recentemente foi marcada, na última Véspera de Ano Novo, pela onda de ataques sexuais a cerca de 100 mulheres locais por grupos formados por refugiados da Síria e imigrantes ilegais, pelo menos os que foram identificados pela polícia local pertenciam a estas categorias.  Este foi um episódio marcante que chocou a Europa e também a opinião global e que tem várias similaridades com a histórica Batalha de Adrianópolis travada no ano de 378 DC.

No século IV, os bárbaros começaram a ser cada vez mais incômodos ao Império Romano, que já havia se dividido em dois.  Os constantes embates com os romanos na fronteira dos dois impérios erodiriam a integridade da nação mais poderosa da Idade Antiga.  Entretanto, os bárbaros passavam longe de ser uma comunidade unida e amistosa entre si.  Os temidos Hunos avançavam da Ásia para o Leste Europeu obrigando os povos desta região a se deslocar para outras áreas, entre eles os Godos que começaram a emigrar para dentro do território romano, em específico ao sul do Rio Danúbio nos Balcãs.  A motivação dos godos era em parte semelhante à dos sírios fugindo do terror praticado pelo Estado Islâmico em suas terras.

Inicialmente, o movimento migratório iniciado em 376 era satisfatório para ambas as partes, os godos poderiam obter refúgio dos hunos em território romano e os romanos compensariam o seu encolhimento demográfico usando os godos para se tornarem soldados, fazendeiros e trabalhadores necessários para reerguer a decadente economia do império.  Mas o tratamento injusto dispensado pelas autoridades romanas locais aos godos rapidamente colocou os dois povos em pé de guerra.  Os romanos subestimaram a quantidade de refugiados godos que atravessaram o Danúbio e não tinham comida suficiente para alimentá-los.  Para piorar, os governadores locais começaram a cobrar preços exorbitantes pelos alimentos, forçando os godos a até venderem suas crianças como escravos.  Enquanto os romanos deslocavam suas tropas para confrontos com os iranianos, um novo inimigo surgia no coração do império, que menosprezou a capacidade de organização dos imigrantes e também a capacidade militar destes.

Temendo pela agressividade dos godos, que se rebelaram e começaram a saquear cidades romanas, o imperador romano oriental Valente chamou de volta suas tropas no Oriente Médio e pediu ajuda à sua contraparte ocidental, seu sobrinho Graciano, que enviou reforços para lidar com as crescentes hostilidades.  Graciano havia obtido vitórias contra tropas bárbaras no oeste europeu o que causou inveja em Valente.  Em 6 de agosto de 378, ainda sem os reforços ocidentais, Valente foi informado de uma tropa de godos se aproximando da cidade de Adrianópolis, atual Edirne.  Movido pela tentação de obter uma vitória contra os godos sem o auxílio de Graciano, Valente resolveu atacar os godos, que eram comandados por Fritigern, um líder godo que os romanos já tentaram assassinar anteriormente.  O que Valente não contava era que a informação do número de godos era incorreta, na verdade as tropas de Fritigern eram mais numerosas que o informado.  O líder godo ainda tentou um acordo com os romanos, mas Valente apesar de conselhos para esperar os reforços rejeitou o acordo e marchou para o combate.  Após várias horas de caminhada, as tropas romanas chegaram aos arredores de Adrianópolis exauridas debaixo de um sol castigador e contra uma tropa mais numerosa e muito mais bem equipada que se imaginava, e bem descansada.  O massacre era um resultado mais do que previsível diante de tanta prepotência e falta de preparo por parte dos romanos.  O imperador Valente foi morto, as tropas foram dizimadas, sem contar que os godos incapacitaram a produção de armas pelos romanos por um bom tempo naquela região.   Os godos com tropas reforçadas até mesmo com hunos continuaram atacando cidades do império apesar de não conseguirem vitórias contra as principais fortificações romanas.  Um acordo entre os povos beligerantes foi obtido posteriormente em 382, no qual os godos obtiveram vantagens importantes como novos “cidadãos” romanos.  Em 410, os visigodos saquearam Roma, em mais um passo para o declínio do império, um resultado do fracasso completo da estratégia de incorporar uma população estrangeira à nação romana.

Movimentos migratórios sempre existiram e continuarão existindo, nações foram formadas graças a estes, a cultura de um país pode se beneficiar em muito, isso sem contar que muitas vezes imigrantes contribuem significativamente para a força de trabalho do país.  O Brasil se beneficiou e muito dos movimentos migratórios ao longo dos séculos.  Hoje, o país possui uma cultura diversificada e rica graças a estes imigrantes.  A imigração é benéfica quando ela adiciona à nação, quando as gerações de imigrantes são assimiladas dentro da população local.  Mas se a imigração cria “uma nação dentro de uma nação”, os problemas surgirão como a história do Império Romano nos ensina.

Muito se mudou, para melhor, entre 376 até os dias atuais.  Hoje seria impensável, ainda bem, imigrantes vendendo crianças como escravas, mas a falta de preparo das autoridades da nação que recebe os imigrantes não mudou muito para o espanto geral.  Como os godos, os refugiados sírios chegaram à Europa em número maior que se previa e sem um planejamento adequado para estes serem absorvidos pelo mercado de trabalho local.  Em grandes números, os imigrantes tendem a se isolar da população local.  Xenofobia e discriminação não resolvem e até agravam, em algumas vezes, o problema.  Aliás, genocídios são iniciados a partir de preconceito como a história nos ensina.  Mas achar que os problemas de discriminação serão resolvidos só com boas intenções é ignorar as possíveis consequências de uma imigração maciça e desordeira.

Os romanos queriam soldados, enquanto a comunidade europeia procura profissionais com um certo grau de qualificação.  Muito se fala que os refugiados sírios possuem alto grau de instrução e podem trabalhar em empregos para o qual o encolhimento demográfico da Europa subtraiu profissionais.  Não duvido que hajam sírios bem formados e competentes, agora achar que a maioria da população tem essa capacidade é exageradamente otimista ao meu ver, ainda mais para um país com uma posição tão medíocre no índice de educação da ONU.  O resultado é que um mercado de trabalho exigente como o europeu não tem vagas para tantos refugiados, que vão acabar se ocupando de tarefas menos qualificadas que os europeus não gostam de realizar, isso se estas estiverem disponíveis.  A barreira da língua é outra que atrapalha e isola os imigrantes, dificultando a integração destes com a população local.  Mas a barreira cultural é o maior problema, ainda mais vindo de uma região onde os direitos das mulheres e a liberdade religiosa são pouco respeitados.  Qualquer concessão nesses pontos por parte dos europeus devido a “diferenças culturais” é inaceitável.  Os padrões de sufrágio, liberdade e direitos existentes nas nações desenvolvidas são aqueles que os imigrantes devem se adequar e não vice-versa.  O império da lei não pode ser alterado.


Os ataques às mulheres em Colônia mostram que há um conflito étnico existente em progresso e uma evidente subestimação do problema pelos europeus.  Como Valente em 378, a polícia local de Colônia não quis reforços e perdeu o controle da situação.  A postura “paz e amor” dos governos europeus não é eficaz e atiçará ainda mais a extrema direita, que é por definição xenófoba.  Não há solução fácil e nem evidente para este problema, sendo que este ainda pode se agravar.  E os ataques terroristas em Paris mostram que os bárbaros já cruzaram o Danúbio há muito tempo.


quarta-feira, 6 de janeiro de 2016

Direitos e Deveres de Martin Shkreli



O “Hitler dos remédios” foi um dos vários apelidos que o especulador americano Martin Shkreli, CEO da Turing Pharmaceuticals, ganhou após sua notória decisão de aumentar de US$13,50 para US$750,00 o preço do comprimido do medicamento Daraprim em junho de 2015, após comprar os direitos relativos a este dos Laboratórios Impax.  A medida repentina afetou severamente aqueles que dependiam do medicamento para combate de doenças como malária e toxoplasmose, no caso da última uma infecção oportunista comum em pacientes com AIDS.  Além de receber inúmeras críticas de associações médicas e farmacêuticas, de políticos americanos de todo o espectro desde Hillary Clinton até Donald Trump, Shkreli obteve bem mais que os habituais 15 minutos de fama, na verdade vários meses de infâmia.  Contratou lobistas e relações públicas, mas para certas atitudes e situações, não há marketing que resolva, nem João Santana faz milagre.  Recentemente, Shkreli foi preso por acusações de fraude, não relacionadas à celeuma do Daraprim, mas independente de sua culpa ou não, quem julgá-lo vai levar em conta, mesmo que inconscientemente, a ganância desenfreada de Shkreli demonstrada.

O que Shkreli fez com os usuários do Daraprim é claramente imoral e beira a chantagem descarada mesmo, por mais que teça inúmeras explicações para justificar o aumento abusivo.  Mas fica o questionamento, até onde vai o dever de um fabricante de medicamento em fornecer a um preço justo um produto mais que necessário para uma clientela que necessita deste para sobreviver, e até onde esse dever interfere com o direito de um dono de negócio de julgar como vender seus produtos e serviços e até mesmo de interromper o fornecimento destes produtos e serviços.  Shkreli mereceu todos os apelidos que ganhou nos últimos meses, mas sob certa ótica seguiu a regra os seus direitos como empresário.  Pergunte a qualquer outro empresário se ele gosta de sofrer ingerência governamental ou popular sobre como conduz seu negócio e com certeza obterá a mesma resposta: um não categórico.

A verdade é que o empresariado tem que ao tomar essas medidas controversas ter duas coisas em mente: primeiro esse tipo de medida é no mínimo antipática e deve ser evitada para se poupar o próprio empresário, e segundo que a longo prazo esse tipo de medida é pouco inteligente, para não dizer burra, pois apesar dos ganhos imediatos instiga a sociedade e o mercado a procurarem alternativas.  Publicidade negativa atrapalha e pode até castigar um negócio severamente, mas algumas vezes tem um efeito limitado.  Lembro quando a Microsoft era considerada uma corporação nociva por estar destruindo a concorrência com práticas abusivas, algo com bastante fundamento aliás, porém poucos ousavam em não usar o Word e o Excel para não incorrerem no risco de criar problemas para outros usuários.  Mas o risco maior é para o empresário.  Outra vez, Shkreli vai sentir o gosto dessa publicidade negativa em seu julgamento.  Além do que esse tipo de atitude serve para atrair carreiristas políticos que gostam de explorar essas situações.  Por muito menos Eliana Tranchesi foi presa por sonegação fiscal e condenada por 94 anos e meio.  Tranchesi passou a ter um alvo pintado nas costas no momento que inaugurou seu elefante branco em São Paulo, a Daslu.  Por mais que não fosse exatamente antipática, a ostentação desnecessária é interpretada como uma afronta por vários.

Na Idade Média, enquanto o Império Bizantino definhava e o Império Otomano conquistava os territórios por onde passavam as rotas das especiarias, os reinos ocidentais procuravam rotas alternativas para se atingir a Índia.  Com a queda de Constantinopla em 1453, os otomanos impuseram tarifas altas para os mercadores, impulsionando de vez as grandes navegações, marcando assim o início da Idade Moderna.  A necessidade sempre foi e será a mãe da invenção, conforme disse Platão, e tentativas de monopolizar um determinado produto ou serviço sempre foram contornadas com a criação de alternativas.  Tanto que a Imprimis Pharmaceuticals em outubro de 2015 anunciou a fabricação de um medicamento genérico que custa US$1,00.  Shkreli deveria ter aprendido com a OPEP a sempre estabelecer os preços de acordo com o mercado, em específico para não deixar produtos alternativos se tornarem mais economicamente vantajosos.  A própria Microsoft viu seu monopólio ser derrubado nos últimos anos.

Em um país onde o livre mercado é um pilar fundamental, a atitude de Shkreli é na verdade um atentado a este pilar.  Tentar lucrar com o desespero alheio é uma justificativa para ingerência.  O bom senso deveria prevalecer nestas situações, mas infelizmente ele é de difícil regulação.  Fabricantes de medicamentos como qualquer ramo de negócios têm direito ao lucro, os pesquisadores que muitas vezes gastam décadas e a vida tentando sintetizar uma droga específica que pode vir a demorar até mais para ser aprovada para uso têm direito a não terem após seu sucesso sua patente quebrada em nome de “um bem maior” para a comunidade.  A livre concorrência é e sempre será a melhor solução para os Shkrelis da vida e seus espasmos monopólicos de curta duração.