O jovem americano Christopher McCandless em
1990 resolveu largar sua vida de recém-formado em história e antropologia, suas
possessões e sua família para trás e se aventurar pelos EUA afora como um
nômade vivendo uma vida “mais simples”.
Seu objetivo era adentrar a natureza selvagem no Alaska, onde veio a falecer
sozinho em 1992. Para quem viu o
comovente filme de Sean Penn, Na Natureza Selvagem, a estória de McCandless é
familiar. O que o filme retratou
incorretamente foi a maneira que McCandless morreu, pois enquanto o filme
mostrou que McCandless morreu ao ingerir alimentos venenosos, as autoridades
concluíram que McCandless morreu de inanição.
Independente de qual versão se acredita, McCandless pagou um preço pelo
seu despreparo e evidente desconhecimento de como sobreviver em um ambiente
mais inóspito que aqueles em que vivemos.
Apesar de alguns poderem imaginar por
desconhecimento geográfico que McCandless morreu próximo ao Polo Norte, na
verdade ele faleceu no coração do Alaska, no Denali, ainda longe do Círculo
Polar Ártico e ainda mais longe do Oceano Ártico. Se McCandless encontrou dificuldades em uma
área ainda não tão inóspita, imaginem como é a vida daqueles que sobrevivem nos
confins do mundo, no litoral do Oceano Ártico.
Não falo dos estabelecimentos como Barrow no Alaska que apesar de ser no
litoral do Ártico, é abastecida com produtos de áreas mais habitáveis, e sim dos
inuítes, ou esquimós, que sempre viveram ali.
Apesar dos Yupiks não serem Inuítes, o termo Inuit é o aceito perante os
aborígenes do Alaska, norte do Canadá e Groenlândia, pois estes consideram
Esquimó um termo pejorativo. A vida dos inuítes
é realmente mais simples na teoria, apesar de seus costumes, não tem que se
preocupar com que carreira irão seguir, contas bancárias, declaração de imposto
de renda, parcelas do carro em atraso, reuniões de condomínio, etc. As únicas preocupações é sobreviver caçando
focas, raposas e outros animais, evitar morrer de frio no inverno (e até no
verão) e se reproduzirem, é claro, para manter a continuidade da espécie. Alguns inuítes mais idosos preferem o suicídio
a se tornarem um estorvo para as famílias.
A vida é bem mais simples para estas comunidades, mas é muito mais dura.
Uma comunidade inuit isolada da sociedade é
talvez o mais próximo que se possa chegar de um socialismo utópico. Não há acúmulo de riquezas, e mesmo que algum
inuit consiga carregar uma quantidade absurda de peles de raposas e outras
quinquilharias, estas terão uma liquidez limitada na “economia inuit”. Todos devem trabalhar em prol da reduzida
comunidade, e existem líderes para colocar um mínimo de organização e foco nas
atividades inuítes. Pobreza e miséria
ocorrem quando a comunidade é incapaz de encontrar alimentos. As crianças inuítes tem como aspiração se
tornarem grandes caçadores ou se conformarem em realizar as necessárias tarefas
domésticas. Não há espaço para improdutividade
em uma comunidade inuit, pois isso pode significar não haver alimento para
sobrevivência no dia seguinte, portanto não existem inuítes acomodados sem trabalhar recebendo benefícios do governo.
A nossa sociedade, incluindo a brasileira,
avançou consideravelmente desde o início da História, permitindo que a produção
de alimentos seja mais farta e que não demande, na maioria das vezes, tanto do
nosso tempo. Essa fartura permitiu que
pudéssemos nos concentrar em outros aspectos da nossa vida, como nossa saúde
(na teoria pelo menos), educação para nós mesmos e nossos filhos, incrementar o
conforto de nossos lares, e até mesmo em lazer.
As nossas sagradas férias são comuns, mas imagino que para um inuit ter
férias tem que ter caçado uma baleia, para o desespero dos ambientalistas, para
poder ter um mês de alimento pelo menos.
O que impressiona na nossa sociedade é a complexidade das atividades que
são requeridas para que possamos produzir esta quantidade de alimentos, além
dos outros bens e serviços que consumimos.
Enquanto a complexidade da atividade econômica inuit é encontrar os
alimentos, a nossa chega ao nível de modificar o DNA destes, para o desespero
dos “eco-chatos”, e realizar previsões metereológicas mais precisas para
antever os eventuais contratempos da natureza selvagem, que continua a nos
incomodar. Um único inuit pode ser capaz
de cuidar de toda a atividade econômica da comunidade, enquanto que nós só
seremos capazes de cuidar de uma parcela reduzida da atividade da nossa sociedade. Às vezes nações inteiras são incapazes de
suprir todas as necessidades de sua população e precisam importar bens.
A complexidade da atividade econômica cada vez mais requer
uma maior capacitação da força de trabalho, conhecimentos mais
específicos e uma versatilidade que vai além da capacidade de vários
profissionais. A impressão que tenho é
que no futuro, existirão profissões que demandarão uma formação que um
indivíduo só poderá atingir quando tiver 40 anos, mas é claro que o
departamento de RH da empresa almejará um jovem de 22 anos, ou menos, com toda
essa capacidade. Para aqueles que de
repente percebem que suas proficiências não estão mais em alta no mercado de
trabalho, pois a atividade econômica apesar de não ser um ser vivo é orgânica e
mutável, fica o desafio de desenvolver novas proficiências para se adequar às
demandas. É similar a uma comunidade
inuit descobrir que as focas desapareceram dos arredores e terem de procurar a
vários quilômetros de distância outras focas ou outro animal que possa servir
de alimento. Apesar de termos muitas
mais demandas de profissões diferentes, muitos de nós por falta de capacitação,
por preconceito do mercado de trabalho estamos condenados a tantas oportunidades profissionais
como aquelas disponíveis para os inuítes.
Sim, mesmo nos dias de hoje há miséria e
escassez de alimentos em alguns lugares.
Mas apesar disso, enquanto podemos consumir mais de 3000 calorias em um
dia, para o desespero dos nutricionistas de plantão, enquanto um inuit consumirá isso se
esbaldar na carne mais gordurosa de uma obesa foca. Hoje em dia, aqui no Brasil
podemos comprar salmão na feira, algo impensável antes do Chile criar este
peixe em suas fazendas, pois importar esse peixe era somente para os mais
abastados. Isso é um exemplo de como a oferta de alimentos é diversificada a preços acessíveis ao longo dos anos. Outros produtos são
barateados ao longo dos anos graças ao avanço tecnológico e também à maior
capacitação dos profissionais envolvidos na cadeia produtiva, inclusive a de
serviços mais complexos.
Nações que se aventuraram pelo socialismo
encontraram o fracasso retumbante justamente pela essência equivocada deste
modelo que julga que é possível domar e entender a complexidade da atividade
econômica e das necessidades do mercado de trabalho. É claro que essa crescente complexidade vem a
criar um desafio enorme para as nações diante da exigência de um capital humano
cada vez mais aprimorado, sendo que aquelas que tiverem o melhor capital humano
se sobressairão em um possível detrimento de outras.
Muitos inuítes estão sendo assimilados pelas
sociedades americanas (no Alaska), canadenses e dinamarquesas (na Groenlândia). Ao executarem tarefas com um mínimo de
complexidade, são capazes de acumular riquezas, pelo menos muito mais que em
comunidades isoladas e nômades, para que possam comprar alimentos sem ter que
caçá-los. Se estes inuítes forem
sensatos o suficiente, poderão até acumular riquezas para adquirirem alguns dos
bens e serviços que estas sociedades norte-americanas disponibilizam a seus
cidadãos.
O paradoxo inuit é que a ciência e a maior
capacitação do ser humano nos proporcionam muito mais que o isolamento e o
estilo nômade podem oferecer, mas mesmo assim muitos de nós não se adequamos às
mudanças do mercado de trabalho, com o agravante que muitas vezes não somos nem
adequados para as tarefas mais simples.
Afinal quantos de nós conseguiríamos sobreviver 1 ano ao norte do
Círculo Polar Ártico? Não saberíamos
caçar focas, fazer casacos de pele de raposas e o mais provável que seríamos
comida de urso polar. O progresso de
nossa sociedade nos tornou inábeis para algumas tarefas primordiais
essenciais. Christopher McCandless
mostra que não estamos nenhum pouco preparados para um retorno à Natureza
Selvagem. Por mais tentador que seja nos
livrar de todos os problemas que temos, somos dependentes do supermercado, do
seguro médico, do posto de gasolina, entre outros serviços disponibilizados
pela nossa sociedade moderna. Mesmo que venhamos a se mudar para o "meio do mato".