terça-feira, 31 de maio de 2016

A Rotação da Terra e o Burro na Sombra

Tentei mas não descobri de onde vem a expressão “amarrar o burro na sombra”.  Mas o significado é bem conhecido.  É o de estar com a vida ganha.  O detalhe é que muitos esquecem que devido à rotação da Terra, as sombras mudam de lugar durante o dia, o que pode ocasionar em o equídeo em questão ficar exposto ao sol.  Conheço alguns amigos e colegas que mesmo sabendo do “deslocamento do Sol no horizonte”, não se preocupam em procurar novas sombras.  Alguns se queimam, outros conseguem sobreviver a este momento de exposição passando certo sufoco.

Ao visitar uma fazenda de crocodilos na Austrália, lembro-me do guia falar que os crocodilos faziam basicamente duas coisas: armazenar energia e se reproduzir, o que ele admitiu serem as suas favoritas.  Podemos extrapolar para boa parte da população que existe uma tendência natural de procurarmos nos acomodar ao longo do tempo.  Outros não conseguem sequer imaginar a sua vida resumida a estas atividades prosaicas, precisam estar sempre progredindo ou sentindo que estão progredindo, apesar de poderem estar estagnados.  Esses diferenciados são necessários à civilização, pois graças a estes, negócios são gerados, avanços científicos são desenvolvidos e empregos são criados.

Mas e os demais que querem “armazenar energia”, o que os leva a se acomodarem?  Apesar de todo guru de RH tecer uma miríade de conceitos do que deve ser feito para se progredir na carreira, a verdade é que muitos não querem ou não enxergam nisso uma prioridade.  Um bom supervisor não necessariamente quer ser um gerente, e um bom gerente não necessariamente quer ser um diretor.  Quanto mais se ascende na carreira, mais responsabilidades serão incumbidas, mais tempo será consumido no trabalho, e mais será exigido das capacidades do profissional.  Conheço bons profissionais que simplesmente não almejam qualquer tipo de promoção, gostam do que fazem, até se dedicam mais do que o necessário.

Dois problemas surgem com esse tipo de atitude, o primeiro mais óbvio é de se expor à concorrência de profissionais mais jovens com mais ambição e menor custo muitas vezes, o que pode fazer com que a empresa promova uma “reciclagem”.  Funções com baixo grau de complexidade e na qual a experiência do profissional é pouco exigida são onde profissionais estão mais vulneráveis a serem “reciclados”.  Os acomodados algumas vezes superestimam suas importâncias em uma empresa e menosprezam a capacidade e o ímpeto de recém-formados.  Esses acomodados até não acreditam que vão se aposentar como assistentes e auxiliares, mas são tomados por uma letargia que os impedem de se mexerem.  Algumas empresas institucionalizam esses acomodados numa simbiose frágil, muitas vezes por receio de não encontrarem alguém no mercado de trabalho que possua a mesma dedicação, ou até pela formação de um vínculo emocional do patrão com o empregado.  No Brasil, esse tipo de simbiose é perigosa devido à nossa obtusa legislação trabalhista, uma vez que um funcionário antigo tem em várias ocasiões aumentos consecutivos de salário (dissídios) acima do crescimento da empresa, além do crescimento da multa rescisória do FGTS.   

O segundo problema é o de se menosprezar as lentas, mas constantes, mudanças na macroeconomia e no mercado de trabalho.  O maior erro que um funcionário pode cometer é o de se achar imprescindível à sua empresa.  Poucos são capazes de enxergar mudanças e tendências no mercado de trabalho que podem resultar até na extinção de setores da economia.  Mas a minha impressão é que menos ainda são aqueles dispostos a tomarem atitudes para se recolocarem mesmo sabendo de riscos eminentes.  Quantos bons datilógrafos perderam seus empregos quando as empresas começaram a passar a usar processadores de texto tipo Word Perfect ou Microsoft Word?  Acredito que alguns deles mesmo sabendo do avanço da informatização, não acreditaram que seriam atingidos.  Outras vezes, o sinal dos tempos não precisa ser no macro, basta ser no micro, a empresa pode estar dando sinais de que promoverá cortes, mas são poucos que buscam refúgio em águas menos turbulentas.  Preferem agonizar por meses imaginando se vão ser demitidos ou não.  Em tempos de crise como a atual, fico surpreso que aqueles que mais procuram headhunters, empresas de recolocação, agências de emprego e outros são aqueles que estão desempregados.

Procurar emprego não é uma tarefa fácil e é demorada.  Exige dedicação, tempo e também resgatar contatos para se fazer o famoso networking.  Quantos de nós, ao final do dia queremos simplesmente relaxar com a família, assistir TV e nos desligarmos do trabalho ao final do dia?  E quantos de nós iremos ao final do dia redigir currículos ao gosto de empresas e agências na esperança que dentro de meses isso resulte em uma oferta de emprego?  É mais cômodo tocarmos o dia a dia no local de trabalho e torcer pelo fim das tormentas de momento e ignorar os fatos.  Além do que, quem quer perder as férias acumuladas ou na pior hipótese perder 40% de multa do FGTS depositado?  Mesmo que o prejuízo do desemprego seja superior a multa, essas tentações momentâneas fazem com que muitos fiquem na sombra mesmo com o Sol se movendo no horizonte.

É claro que a precipitação é um mau motivador para tomarmos atitude, às vezes passamos de um emprego com situação momentânea ruim para um emprego com situação permanente pior.  Há que sermos cuidadosos de não se mudar de emprego com frequência alta para não ganharmos a pecha de mercenário, no qual as empresas contratantes terão sérias dúvidas do comprometimento do funcionário.  Mas alguns sinais que o sol está se movendo devem ser observados: ociosidade, disparidade com a idade média dos equivalentes, estagnação em tarefas simples, distanciamento da chefia, entre outros bem menos sutis.  Observado isto, é hora de se procurar uma nova sombra.

As empresas devem tomar cuidado em não criar climas de insegurança generalizada e nem em exigir que todo funcionário almeje ser o diretor superintendente um dia, erro ainda comum cometido pelas chefias e os departamentos de RH.  Empresas que promovem excessivas “reciclagens” reduzem o moral de seus quadros, resultando em possíveis perdas de bons empregados, e incorrem no risco de contratarem substitutos pouco qualificados.  Afinal, os primeiros a saírem de empresas em turbulência são os mais qualificados, pois tem mais capacidade de se recolocarem, e só depois os acomodados.  Este é o motivo que as reciclagens devem ser feitas com muito critério e cautela.

Mas as empresas não são família e nem resort no Caribe para providenciar conforto e acomodação para seus empregados.  A sensação de tranquilidade e acomodação quem deve procurar somos nós e não esperar que isso venha de uma empresa.  É claro que é sempre bom trabalharmos em um local onde temos respeito e reconhecimento do histórico, da experiência e do legado de anos de bons serviços, mas não devemos esperar que isso seja certo e merecido.  Civilizações entraram em declínio por se acomodarem em situações transientes e o mesmo raciocínio é válido para nós.