quarta-feira, 31 de maio de 2017

Nem Clark Kent, Nem Lex Luthor

As estórias de heróis e seus respectivos cultos têm origem no início da civilização.  As mais conhecidas são as da Grécia Antiga, como a do semi-Deus Hércules que entre várias tarefas derrotou diversos inimigos  como Cérbero, o cão de três cabeças guardião do inferno.  Este não era o único herói da mitologia grega, outros famosos são Perseu que matou a Medusa e Teseu que aniquilou o Minotauro.  Todos estes heróis derrotaram nas estórias seres mitológicos de poderes sobrenaturais que eram a encarnação do mal.  Estas conquistas não poderiam ser repetidas por meros mortais e, portanto, só heróis teriam como obtê-las.  Os gregos, porém, criavam seus heróis com traços mais humanos, falíveis e, portanto, passíveis de lapsos como qualquer humano.  Até os deuses gregos tinham características humanas e eram vulneráveis a sentimentos como inveja, ganância e amor.  Outras civilizações durante a história também criaram seus herói como o Rei Artur, Beowulf, Guilherme Tell, entre outros.  Aliás, muitos destes heróis mitológicos foram pessoas normais que conseguiram feitos impressionantes e devidamente exagerados por aqueles responsáveis pelo registro histórico destes.  Os mais céticos alegarão que religiões foram criadas de maneira similar.

O Século XX viu o nascimento dos gibis dos super-heróis, resultando na "guerra" entre a Marvel e a DC Comics.  Esta última criou talvez o mais famoso dos super-heróis, o Super-Homem e seu alter ego Clark Kent, em 1938.  Quem viveu a década de 1970 certamente vai lembrar do filme de 1978, estrelado pelo saudoso Christopher Reeve no papel do herói e Gene Hackman no papel do arqui-inimigo Lex Luthor.  Este é o filme do Super-Homem que me marcou, pois não me entusiasmei com as tentativas de reboot estreladas por Brandon Routh e Henry Cavill.  O retrato de 1978 de Clark Kent era de um sujeito normal dotado de uma bússola moral ímpar que sempre o guiava na luta contra seus inimigos, como Luthor.  Este era retratado de maneira até cômica por Hackman, mas no fundo era um personagem inescrupuloso capaz de matar milhões por especulação imobiliária.  Olhando para trás, vejo que o que mais me incomodava nas estórias de heróis, em específico as do Super-Homem, era como os humanos comuns eram retratados.  Nós, meros mortais, nestas estórias, éramos sempre incompetentes para lidarmos com nossos problemas.  Os criminosos aterrorizavam a população sem que as autoridades fossem minimamente capazes de controlá-los, e até mesmo quando estes criminosos eram presos, eles escapavam de maneira muitas vezes fácil.  Esse retrato da inépcia humana é até ofensivo, mas muitas vezes realista.  Basta ver quantos de nós adulamos figuras públicas na esperança que estas venham a resolver nossos problemas.  Esperamos que estas figuras sejam como o Clark Kent, um sujeito até certo ponto tedioso e ordinário, e se revelem super-heróis para colocar todos os criminosos na cadeia.

Lembro de um momento na história brasileira que boa parte da população foi tomada por uma euforia incomum.  Naquele instante, a população passou a acreditar que todos os problemas de corrupção, miséria, criminalidade, etc, seriam resolvidas por um homem que era visto como íntegro, honesto e determinado a corrigir todos os desvios da nação.  Era um super-herói brasileiro que estava surgindo.  O ano era 2002 e o homem era Lula.  Quantos não foram as ruas comemorar a eleição de Lula?  Poucos realmente se interessaram em saber quais eram os planos do presidente eleito para tirar o Brasil do sufoco.  Na época, estava preocupado se Lula não iria colocar em prática suas mais tresloucadas propostas apresentadas nas eleições perdidas de 1989, 1994 e 1998.  Estas certamente arruinariam o país em tempo recorde, mas nada que mais de 13 anos de irresponsabilidade fiscal e corrupção desenfreada não resolvessem.  Hoje, vários dos que comemoraram a eleição de Lula comemorarão uma eventual prisão deste.  Lula foi de herói para vilão para muitos, haja visto sua alta rejeição em pesquisas de opinião, mas continua sendo adorado por alguns de maneira irracional.

O julgamento do Mensalão iniciado em 2012 revelou outro potencial herói para a população brasileira: o ministro do STF Joaquim Barbosa.  Surgiu até mesmo como um nome para presidente em pesquisas de opinião.  Felizmente, essa ideia não foi para frente devida à veia meio autoritária do ex-ministro.  Ninguém se preocupou com a teoria do domínio do fato, mas sim se os políticos julgados seriam condenados.  Inocência ou culpa era uma questão secundária.  Como ousar questionar o julgamento de um herói como Barbosa?  Bastava que Barbosa decidisse para que houvesse apoio incondicional a esta decisão.  Felizmente, o julgamento decorreu de maneira que vários corruptos e o facínora do José Dirceu fossem condenados.

O mesmo acontece agora na Operação Lava-Jato.  Sérgio Moro foi alçado a uma condição de super-herói e de salvador da pátria.  Claro que há questionamentos sobre se as prisões preventivas têm sido excessivas ou usadas como uma maneira de extorquir confissões.  Aliás, este tipo de artimanha não é exclusiva do Ministério Público brasileiro, até mesmo as promotorias dos Estados Unidos forçam acordos goela abaixo de acusados.  Mas aqui, estamos se aproximando de um ponto que basta a Polícia Federal, Ministério Público ou o Sérgio Moro suspeitar da culpa de alguém para este dever estar trancafiado sem sequer poder exigir qualquer direito constitucional.  Ainda não vivemos algo parecido com o Reino do Terror da França pós-revolucionária de 1793, mas me incomoda a ausência de questionamento jurídico de boa parte da população quanto às ações da Operação Lava-Jato.  Claro que há críticos, entre eles Reinaldo Azevedo e seu histrionismo.  Nota-se que o vazamento da conversa de Azevedo com Andrea Neves dá a nítida impressão de retaliação do Ministério Público contra Azevedo.  O Brasil se encontra em um ponto perigoso em sua história.

O episódio que envolveu a gravação de Michel Temer com o mega-criminoso e dublê de empresário Joesley Batista é escandaloso.  É claro que Temer foi pego em uma situação para lá de constrangedora, mas a maneira que foi pego é preocupante.  Uma gravação ilegal, não peritada e de qualidade para lá de duvidosa foi usada para se lançar o país para uma tempestade.  Porém, o atual repúdio ao acordo de delação com Joesley e agregados mostra que há claramente um limite que o Ministério Público ultrapassou.  Se o pescoço de Joesley fosse "oferecido à guilhotina" junto com os de Temer e Aécio Neves, esse tipo de ação ilegal seria amplamente comemorado.  O fato do Ministério Público brasileiro não ter que responder a ninguém além do próprio Ministério Público preocupa, uma vez que este tipo de ação não é repreendida sob temor da opinião pública considerar qualquer repreensão como uma retaliação por parte de políticos corruptos.

O sucesso da Operação Lava-Jato é necessário por vários motivos, entre eles extirpar sistemas viciados da coisa pública, mostrar punições exemplares a corruptos e corruptores e também resgatar a esperança brasileira em que o país ainda tem chance de dar certo, sabe-se lá quando!  Esses motivos me lembram aqueles mostrados na população que adorava os super-heróis.  A derrota de Lex Luthor para o Super-Homem sempre era um alento à população castigada.  Não interessava se o Super-Homem (ou qualquer outro super-herói) transgredisse as leis desde que o resultado fosse a derrota do vilão.  A retidão moral e ética de Clark Kent era quase um passe livre para suas ações.  Qualquer policial, promotor e juiz que se julgar acima da lei para agir de qualquer maneira para atingir fins específicos está violando o estado democrático.  Se isto ocorre repetidamente, então cria-se um estado de exceção e com apoio popular.

Não devemos esquecer que apesar de cidadão de destaque, ainda positivo, os protagonistas da Operação Lava-Jato não devem receber um cheque em branco da sociedade para fazer o que bem entendem para atingir os resultados.  Estes são sim subordinados às leis descritas na Constituição Brasileira, por mais que esta seja problemática.  E também devemos lembrar que os vilões nossos, Joesley Batista e até mesmo Lula, estão aí por nossa responsabilidade.  Como gosto de lembrar, mesmo diante de um apoio maciço da população ao julgamento dos mensaleiros, Lula foi re-eleito em 2006 por essa mesma população, cúmplice da corrupção amplificada pelo PT e dos conchavos do governo lulopetista com criminosos da laia de Joesley Batista.  O Brasil atravessará uma sequência de crises enquanto nos portarmos como os pusilânimes humanos das estórias do Super-Homem.