O renomado escritor austro-húngaro Franz Kafka
(1883-1924) fez sucesso descrevendo estórias onde relatava os peculiares dramas
dos protagonistas submetidos a situações absurdas como processos no qual sequer
sabiam da acusação (O Processo, 1925)
e até se transformarem em insetos gigantes (A
Metamorfose, 1915). Nesta última
obra, existe até hoje um debate sobre qual inseto o protagonista Gregor Samsa
se transforma, embora exista uma crença disseminada que foi uma barata. No Brasil após o finado grupo Inimigos do Rei ter criado a “pérola”
musical “Uma Barata Chamada Kafka” em
1989, essa crença foi consolidada.
Alguns estudiosos consideram que na verdade Samsa tenha se transformado
em um besouro. A discussão entomológica
se Samsa havia se tornado ou um blatódeo ou um coleóptero é bizantina, mas necessidade desta é representativa
do que o termo kafkiano significa, sendo que este se estende até outras
situações cotidianas no qual indivíduos enfrentam principalmente a burocracia.
Talvez se Kafka tivesse conhecido o Brasil, ou
outro país infestado de insetos burocratas mais danosos que as baratas, talvez
repensasse suas obras literárias ou simplesmente tivesse mais inspiração para
escrever o triplo de estórias que escreveu!
Nós gostamos de criticar o governo em todas as suas instâncias pela sua
lerdeza intrínseca e quantidade de procedimentos criados por indivíduos sem o
menor comprometimento em facilitar a vida alheia. Basta acompanhar as atividades padrão de
qualquer vereador neste país para notar que geralmente se não estou votando em
mudança de nome de rua ou de praça estão criando uma lei para dificultar a vida
das “baratas” (nós), isso quando não estão dilapidando o erário público! O termo burocracia é originário do século XIX
e significa o governo dos escritórios, ou simplesmente o governo daqueles que
passam o dia distante do cotidiano das situações que legislam. A burocracia é importante quando é um
instrumento para análise, estratégia e organização de um governo ou uma empresa,
mas jamais poderá ser o propósito final.
Gostamos de reclamar dos burocratas, mas nem
sempre percebemos que muitos de nós trabalhamos em escritórios e às vezes criamos
dificuldades para as baratas. Na
verdade, a mentalidade burocrata não é exclusiva do governo e empresas privadas
também sofrem deste mal. Scott Adams criador
do impagável personagem de quadrinhos Dilbert
foi um ácido crítico de empresas que populam em seus quadros funcionários que
não geram nenhuma receita e infernizam o trabalho daqueles que geram
receitas. Um exemplo era quando o
protagonista vai para o departamento de contabilidade da empresa e lá é
aprisionado em um escritório que mais parecia uma galeria subterrânea das
trevas com vários demônios trabalhando, e no final Dilbert se transforma em um
demônio, ao invés de uma barata. Na
minha experiência profissional, e de muitos outros também, me deparei várias
vezes com situações absurdas em vários graus.
Lembro de quando o departamento de
desenvolvimento de processos no qual trabalhava adquiriu um medidor de umidade
de grãos com o propósito de assistir os clientes da empresa no processo de
secagem de grãos. Era um equipamento
caro, cerca de US$5.000,00, que na teoria deveria sempre ser transportado com
devida nota fiscal. Quando éramos
chamados para visitar um cliente e avaliar o processo, o prazo para o início do
serviço era curto e impreterivelmente inferior ao necessário para emissão da
nota fiscal que podia demorar mais de uma semana. Entendia que para a empresa o mais importante
era a assistência ao cliente e não a conformidade à burocracia, então pedia a
secretária para assinar uma autorização de saída do medidor do prédio e viajava
até o cliente com este medidor em situação irregular. É claro que não era o certo, mas a letargia
da burocracia irritava, não só a mim, e o risco de uma contravenção pesava
menos que o prejuízo de insatisfazer o cliente.
Em outra situação recente, um membro do
departamento de TI de outra empresa que trabalhei falava sobre os procedimentos
e os serviços de seu departamento para uma platéia. Falou sobre a criação da nuvem da empresa no
qual os funcionários poderiam arquivar documentos para acessá-los em qualquer
computador. Depois mencionou que a norma
da empresa restringia somente à gerência o acesso aos drives USB nos
computadores da empresa para evitar que arquivos sensíveis fossem copiados em
dispositivos externos. Foi quando um
colega fez a pergunta que passou pela cabeça de todos: por que essa proibição
se o funcionário poderia simplesmente mandar o arquivo para a nuvem? O sujeito gaguejou e foi incapaz de fornecer
uma resposta, disse que teria de rever os procedimentos internos. Na verdade, além da nuvem, os funcionários
podiam enviar por e-mail qualquer arquivo sensível para qualquer endereço
eletrônico! Mas a proibição de acesso
aos drives USB servia para dificultar recebermos arquivos de clientes e
fornecedores que eram importantes ao trabalho diário.
Estes são dois exemplos, e tenho outros, de que
a burocracia não pode ditar o ritmo de atividades diárias e nem ser um convite
para que as pessoas a burlem simplesmente para poderem exercer suas atividades
diárias. É difícil dizer se um burocrata
dificulta às vezes a vida alheia por instrução de um superior, ou simplesmente
porque não se importa mesmo, ou até porque se satisfaz criando dificuldades e
exercendo autoridade sobre outros. Uma
empresa onde a burocracia se torna cada vez mais pesada, confusa e lenta é uma
empresa que sofrerá em várias frentes com perda de competitividade, aumento de
custos e até com fuga de bons funcionários para outros empregos. Em suma, o mercado pune severamente aqueles
que julgam que criar procedimentos é o âmago de qualquer negócio, ao invés de
bons produtos e serviços.
E esta é uma razão para qual os governos
deveriam ser mínimos e a maioria das estatais deveriam ser privatizadas. Quem já trabalhou com a Petrobras sabe que
ela têm, infelizmente, várias outras atividades além de extrair e refinar
petróleo, sendo que uma notória é a publicação de normas de engenharia,
construção, etc. Algumas delas são até
boas e úteis, mas conheço pessoas dentro da Petrobras que já me falaram que até
os funcionários procuram burlar algumas normas mas tem medo de fazer isso e
tentam empurrar a responsabilidade da rebeldia para outros. O curioso é que já presenciei empresas
privadas adotarem informalmente as normas Petrobras em suas atividades. Por mais útil que isso possa ser em devidas
oportunidades é um risco de incentivar uma desnecessária burocracia.
Governos devem ser enxutos pois justamente carecem
do incentivo de serem “simplificados”, se a burocracia afetar o desempenho do
governo (déficit primário), há sempre a opção de aumentar os impostos ou criar
moeda gerando inflação. A estabilidade
do emprego de funcionários públicos, apesar de ter sido elaborada por boas
intenções, dificulta uma reestruturação da burocracia oficial e incentiva
muitos destes a não procurarem melhorar os serviços prestados. É claro que existem exemplos onde o governo
melhorou e muito os seus procedimentos, mas no geral o Brasil tem muito o que
caminhar. É difícil explicar a um
estrangeiro o que é um despachante e que um cartório pode ser um negócio
lucrativo.
Nós as baratas sofremos com este cotidiano de
dificuldades criadas, muitas vezes sem se saber o porquê delas simplesmente
existirem. Mas é bom reconhecer que
quase todos temos uma propensão a criar dificuldades e temos de ser incentivados
a agir de maneira contrária. Qualquer
sociedade que incentivar em demasia seus membros a se tornarem criadores de
procedimentos é uma sociedade que taxará estes com perda de de produtividade e
tempo, sem contar a drenagem de bons profissionais que podem ficar tentados a
deixar empregos produtivos por uma burocracia lucrativa.