domingo, 28 de junho de 2015

A Difícil Vida das Baratas



O renomado escritor austro-húngaro Franz Kafka (1883-1924) fez sucesso descrevendo estórias onde relatava os peculiares dramas dos protagonistas submetidos a situações absurdas como processos no qual sequer sabiam da acusação (O Processo, 1925) e até se transformarem em insetos gigantes (A Metamorfose, 1915).  Nesta última obra, existe até hoje um debate sobre qual inseto o protagonista Gregor Samsa se transforma, embora exista uma crença disseminada que foi uma barata.  No Brasil após o finado grupo Inimigos do Rei ter criado a “pérola” musical “Uma Barata Chamada Kafka” em 1989, essa crença foi consolidada.  Alguns estudiosos consideram que na verdade Samsa tenha se transformado em um besouro.  A discussão entomológica se Samsa havia se tornado ou um blatódeo ou um coleóptero é bizantina, mas necessidade desta é representativa do que o termo kafkiano significa, sendo que este se estende até outras situações cotidianas no qual indivíduos enfrentam principalmente a burocracia.

Talvez se Kafka tivesse conhecido o Brasil, ou outro país infestado de insetos burocratas mais danosos que as baratas, talvez repensasse suas obras literárias ou simplesmente tivesse mais inspiração para escrever o triplo de estórias que escreveu!  Nós gostamos de criticar o governo em todas as suas instâncias pela sua lerdeza intrínseca e quantidade de procedimentos criados por indivíduos sem o menor comprometimento em facilitar a vida alheia.  Basta acompanhar as atividades padrão de qualquer vereador neste país para notar que geralmente se não estou votando em mudança de nome de rua ou de praça estão criando uma lei para dificultar a vida das “baratas” (nós), isso quando não estão dilapidando o erário público!  O termo burocracia é originário do século XIX e significa o governo dos escritórios, ou simplesmente o governo daqueles que passam o dia distante do cotidiano das situações que legislam.  A burocracia é importante quando é um instrumento para análise, estratégia e organização de um governo ou uma empresa, mas jamais poderá ser o propósito final.

Gostamos de reclamar dos burocratas, mas nem sempre percebemos que muitos de nós trabalhamos em escritórios e às vezes criamos dificuldades para as baratas.  Na verdade, a mentalidade burocrata não é exclusiva do governo e empresas privadas também sofrem deste mal.  Scott Adams criador do impagável personagem de quadrinhos Dilbert foi um ácido crítico de empresas que populam em seus quadros funcionários que não geram nenhuma receita e infernizam o trabalho daqueles que geram receitas.  Um exemplo era quando o protagonista vai para o departamento de contabilidade da empresa e lá é aprisionado em um escritório que mais parecia uma galeria subterrânea das trevas com vários demônios trabalhando, e no final Dilbert se transforma em um demônio, ao invés de uma barata.  Na minha experiência profissional, e de muitos outros também, me deparei várias vezes com situações absurdas em vários graus.

Lembro de quando o departamento de desenvolvimento de processos no qual trabalhava adquiriu um medidor de umidade de grãos com o propósito de assistir os clientes da empresa no processo de secagem de grãos.  Era um equipamento caro, cerca de US$5.000,00, que na teoria deveria sempre ser transportado com devida nota fiscal.  Quando éramos chamados para visitar um cliente e avaliar o processo, o prazo para o início do serviço era curto e impreterivelmente inferior ao necessário para emissão da nota fiscal que podia demorar mais de uma semana.  Entendia que para a empresa o mais importante era a assistência ao cliente e não a conformidade à burocracia, então pedia a secretária para assinar uma autorização de saída do medidor do prédio e viajava até o cliente com este medidor em situação irregular.  É claro que não era o certo, mas a letargia da burocracia irritava, não só a mim, e o risco de uma contravenção pesava menos que o prejuízo de insatisfazer o cliente.

Em outra situação recente, um membro do departamento de TI de outra empresa que trabalhei falava sobre os procedimentos e os serviços de seu departamento para uma platéia.  Falou sobre a criação da nuvem da empresa no qual os funcionários poderiam arquivar documentos para acessá-los em qualquer computador.  Depois mencionou que a norma da empresa restringia somente à gerência o acesso aos drives USB nos computadores da empresa para evitar que arquivos sensíveis fossem copiados em dispositivos externos.  Foi quando um colega fez a pergunta que passou pela cabeça de todos: por que essa proibição se o funcionário poderia simplesmente mandar o arquivo para a nuvem?  O sujeito gaguejou e foi incapaz de fornecer uma resposta, disse que teria de rever os procedimentos internos.  Na verdade, além da nuvem, os funcionários podiam enviar por e-mail qualquer arquivo sensível para qualquer endereço eletrônico!  Mas a proibição de acesso aos drives USB servia para dificultar recebermos arquivos de clientes e fornecedores que eram importantes ao trabalho diário.

Estes são dois exemplos, e tenho outros, de que a burocracia não pode ditar o ritmo de atividades diárias e nem ser um convite para que as pessoas a burlem simplesmente para poderem exercer suas atividades diárias.  É difícil dizer se um burocrata dificulta às vezes a vida alheia por instrução de um superior, ou simplesmente porque não se importa mesmo, ou até porque se satisfaz criando dificuldades e exercendo autoridade sobre outros.  Uma empresa onde a burocracia se torna cada vez mais pesada, confusa e lenta é uma empresa que sofrerá em várias frentes com perda de competitividade, aumento de custos e até com fuga de bons funcionários para outros empregos.  Em suma, o mercado pune severamente aqueles que julgam que criar procedimentos é o âmago de qualquer negócio, ao invés de bons produtos e serviços. 

E esta é uma razão para qual os governos deveriam ser mínimos e a maioria das estatais deveriam ser privatizadas.  Quem já trabalhou com a Petrobras sabe que ela têm, infelizmente, várias outras atividades além de extrair e refinar petróleo, sendo que uma notória é a publicação de normas de engenharia, construção, etc.  Algumas delas são até boas e úteis, mas conheço pessoas dentro da Petrobras que já me falaram que até os funcionários procuram burlar algumas normas mas tem medo de fazer isso e tentam empurrar a responsabilidade da rebeldia para outros.  O curioso é que já presenciei empresas privadas adotarem informalmente as normas Petrobras em suas atividades.  Por mais útil que isso possa ser em devidas oportunidades é um risco de incentivar uma desnecessária burocracia.

Governos devem ser enxutos pois justamente carecem do incentivo de serem “simplificados”, se a burocracia afetar o desempenho do governo (déficit primário), há sempre a opção de aumentar os impostos ou criar moeda gerando inflação.  A estabilidade do emprego de funcionários públicos, apesar de ter sido elaborada por boas intenções, dificulta uma reestruturação da burocracia oficial e incentiva muitos destes a não procurarem melhorar os serviços prestados.  É claro que existem exemplos onde o governo melhorou e muito os seus procedimentos, mas no geral o Brasil tem muito o que caminhar.  É difícil explicar a um estrangeiro o que é um despachante e que um cartório pode ser um negócio lucrativo.

Nós as baratas sofremos com este cotidiano de dificuldades criadas, muitas vezes sem se saber o porquê delas simplesmente existirem.  Mas é bom reconhecer que quase todos temos uma propensão a criar dificuldades e temos de ser incentivados a agir de maneira contrária.  Qualquer sociedade que incentivar em demasia seus membros a se tornarem criadores de procedimentos é uma sociedade que taxará estes com perda de de produtividade e tempo, sem contar a drenagem de bons profissionais que podem ficar tentados a deixar empregos produtivos por uma burocracia lucrativa.